Voz do Autor - Entrevista com Cleyton Sidney Andrade, autor da EdUFAL

Poderiam a Psicanálise e a Literatura caminhar juntas? A rigor duas áreas de conhecimento distintas, ambas estão no cerne do livro "Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanálise", de autoria do Prof. Dr. Cleyton Sidney Andrade. A obra, que foi publicada pela Editora da UFAL, ganhou no ano passado o Prêmio Jabuti 2016 na categoria "Psicologia, psicanálise e comportamento", mostrando como a escrita poética chinesa e a experiência de Lacan na China fundamentaram postulados do psicanalista francês. Originalmente, o texto fez parte da tese defendida pelo autor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, em 2013, mas agora Cleyton Andrade é professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, cuja editora foi responsável pela edição do seu livro.
Em nossa conversa para a coluna A Voz do Autor, o prof. Cleyton fala sobre a representatividade do prêmio que recebeu, valorizando a importância de ter uma editora universitária reconhecida, e busca elucidar para os leigos um pouco do mistério por trás da escrita chinesa.
1) Primeiramente, gostaríamos que comentasse a relevância de ter sua obra reconhecida pelo Prêmio Jabuti, o maior do setor literário no Brasil. Também levando em consideração o predomínio de editoras do eixo Sul-Sudeste do país neste tipo de premiação, o que significa ainda poder representar uma instituição de ensino do Nordeste, recebendo o troféu de 1º lugar?
Desde que me entendo como leitor e amante das letras e dos livros, ouço falar do Prêmio Jabuti. Sempre foi um signo de prestigio e admiração da minha parte. Não me parece necessário dizer do lugar que ele ocupa no cenário literário brasileiro, mas apenas apontar que sempre teve o efeito em mim, de chamar a atenção para os títulos e autores premiados, e até finalistas, que por ventura eu ainda não conhecesse até ali.
Sou mineiro de Belo Horizonte, um estado com tradição cultural e literária importantes, e sei do peso que o eixo sul-sudeste tem em diversas áreas, não sendo diferente em relação à literatura. O Nordeste sempre foi, e é, um berço da maior importância para a cultura brasileira. Não tem como destacarmos aqui os nomes que levaram o Brasil para o mundo que, surgiram no nordeste, que cantaram, escreveram e falaram do nordeste e o próprio nordeste. Há quase três anos me mudei para o estado de Alagoas, a terra de Graciliano Ramos, para me limitar a um nome apenas. Mas sei que, por diversos motivos, não só literários, culturais, mas, sobretudo, políticos e sociais, um prêmio como esse vir para o estado de Alagoas e para a Universidade Federal de Alagoas, tem um significado especial.
É um estado pequeno, que infelizmente frequenta a lista dos piores índices sociais e econômicos do país. Geralmente lidera em índices de violência, homicídios, falta de saneamento básico, falta de infraestrutura, analfabetismo, índices de pobreza e miséria, etc. Geralmente digo aos meu alunos que, estarem numa universidade em Alagoas e não lerem, é um problema ético e moral grave, uma vez que chegaram ao ensino superior num estado com o número tão grande de analfabetos e analfabetos funcionais. Com tudo isso, dá para se ter uma ideia do significado político de um prêmio como esse chegar em Alagoas.
Além disso, a situação atual do circuito de livros no Brasil sofre um impacto talvez até mesmo maior que outras áreas. Numa crise é possível que muitos deixem de adquirir livros. Se grandes editoras sentem o peso do momento, o que dirá as editoras universitárias. É desnecessário destacar mais elementos para que isso seja compreensível. Por isso acho que todos os prêmios que foram para as editoras universitárias deveriam ter não só um destaque, mas um momento de reflexão inadiável.
A EDUFAL é uma editora pequena, ainda mais se formos comparar com as editoras que poderiam ter vencido o prêmio na categoria, por exemplo. A UFAL também é uma universidade pequena em recursos e extensão. Mas conta com um corpo docente e discente dispostos a darem suas contribuições para o crescimento da instituição e principalmente do estado. Sinto-me orgulhoso de contribuir para este projeto.
Afinal, o fato de ser um desconhecido foi um bom modo de fazer com que a editora, a universidade e o estado aparecessem mais que meu nome próprio. Acho isso bom. Ouvi muitos dizerem: "quem é esse autor lá de Alagoas?". Isso me orgulha, mesmo sendo mineiro.
2) Em seu premiado livro, "Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanálise", você trata das relações menos diretas entre significante e significado na língua chinesa e como o estudo dessas peculiaridades do idioma contribuíram para reflexões de Lacan a respeito da psicanálise freudiana. Poderia explicar para nossos leitores, em linhas gerais, o que torna o mandarim tão particular e como Lacan relacionou o seu estudo com a psicanálise?
Num certo sentido, o mandarim é uma língua como outra qualquer. E, como tal, cumpre todas as funções que uma língua normal que pertence e é usada e constitutiva de um povo ou cultura. O mandarim, portanto, não é melhor nem pior que qualquer outra língua. Acho importante salientar isso para evitar que se conclua, apressadamente, que eu demarcaria algum tipo de superioridade dessa língua sobre as ocidentais. Não há ideal da língua no "Lacan chinês". Nem da língua, nem da escrita, muito menos da China e do Oriente. Isso tem que ser bem marcado, uma vez que é comum a uma certa parcela do público que se interessa por temas ligados ao Oriente pensá-los como um ponto de exceção, um ideal, algo um passo adiante em seja lá o que for. Não se trata disso em absoluto, nem nesse livro, nem no escopo do interesse tanto de Lacan, quanto da psicanálise de orientação lacaniana.
A questão mais importante passa pela escrita. A língua também tem seus pontos que são de valia para pensarmos algumas questões importantes no campo da psicanálise, porém, é com relação à escrita chinesa que eu acentuaria o ponto mais importante. Ao contrário do que o nome indica, não seria muito correto chamar de ideograma, uma vez que ele não é a grafia direta de uma ideia. Não seria a escrita de uma ideia tal como ela é como se representasse diretamente a coisa. De modo algum! Esse era o sonho do europeu entre os séculos XVII e XVIII, sonho que resultou, dentre outras coisas, nessa expressão que nos desvia do foco: ideograma. Apesar de usar esse termo no título, tenho a oportunidade, ao longo do livro, de expressar uma crítica a ele. Pois bem, o caractere chinês compõe um tipo de escrita que não é alfabética como a nossa, por exemplo. Não há um alfabeto chinês, assim como não há um alfabeto japonês. A rigor, não há letra chinesa nem japonesa, para a desilusão de muitos tatuadores e tatuados. Quem não conhece alguém que jura que tem uma tatuagem com uma letra chinesa? Assim como o caractere não é um símbolo que representa alguma coisa. Volto a dizer: quem não conhece também alguém que já tenha dito que tatuou um “símbolo japonês, ou chinês”? Quando essas pessoas dizem que tatuaram o “símbolo chinês do amor”, no máximo tatuaram a palavra “amor”, não o símbolo. Se ela é uma escrita, ela não é composta por uma sucessão de símbolos como se estivéssemos diante de um livro do Dan Brown. Se fosse mais rigoroso, eu diria que se trata de um morfema, mas aqui acho suficiente dizer que é uma palavra. Mas não é uma palavra composta por um sistema fechado de representações, nem por letras que transcreveriam os sons, fones ou fonemas.
É justamente essa separação, ou hiância, que marca uma não correlação direta entre som e escrita, sem, contudo, ser completamente independente, senão voltaríamos aos símbolos, ícones, sinais, etc, é que reside a importância dessa escrita. Insisto que não há uma independência absoluta entre som e escrita, entre fala e escrita, mas não há uma correlação direta como nas escritas alfabéticas. Com isso é possível pensar numa hiância, num intervalo entre fala e escrita. E fazer essa diferenciação na teoria e na clínica psicanalíticas.
Se uma análise se faz, é falando, e não escrevendo cartas, e-mails ou WhatsApps ao analista. Por outro lado, há no sintoma, no gozo, algo que é irredutível à fala e suas articulações simbólicas. Há um ponto duro aí. Há algo que resiste à significação e ao sentido, e por isso mesmo não é recoberto diretamente pela fala. A isso chamamos de escrita, de letra. A escrita chinesa permite a Lacan fazer essa distinção entre significante e letra, entre fala e escrita.
3) Por fim, poderia nos falar um pouco sobre a importância da poesia para o chinês e para o seu idioma?
A poesia é um tema vasto e foi o ponto de partida, e digamos que o ponto de chegada, do livro. A pesquisa surgiu de uma referência de Lacan a respeito da interpretação analítica, isso por volta de 1977. Num momento onde muitos acreditavam que a interpretação seria algo ultrapassado para a psicanálise lacaniana. Se pensarmos que a interpretação se processa pela via do sentido, revelando algo antes obscuro, é fácil entender como, num período onde Lacan dá mais ênfase ao sem sentido, à perda do sentido, àquilo que não funciona bem nos circuitos simbólicos, como a interpretação deixaria de ser algo central na racionalidade psicanalítica. Porém, surpreendentemente, nesse mesmo período ele retoma o tema da interpretação. Mas ela não estaria com os dias contados? Pois é! E ele a retoma justamente em relação à escrita poética chinesa. Ou seja, se um analista (só interessa aos analistas) quer saber qual o ponto fundamental da interpretação, ele deveria buscá-lo na escrita poética chinesa. Não qualquer poesia. Não em qualquer escrita poética. Mas na escrita poética, vejam bem: chinesa. Ele aponta que o que ele chama e leva em conta na poesia deve ser entendido a partir da poesia, escrita, chinesa. O livro segue esse percurso.
Grosso modo, a escrita poética chinesa antecipa o que aquele que já foi chamado de movimento vanguardista na literatura promoveu ou elevou ao estatuto de princípio. Estamos falando de Mallarmé, James Joyce, os concretistas brasileiros como Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, dentre outros. Portanto, o "Lacan chinês" também busca uma conversa com as Letras, com a Literatura.
A poesia faz ou pelo menos fez parte historicamente da constituição do que era ser chinês, seja pelo aprendizado de um dos livros canônicos do confucionismo, um deles dedicado exclusivamente à poesia, seja pela característica da língua e da escrita muito plasticamente convidativos aos jogos de palavras e montagens de escrituras. Durante muito tempo, jogos de disputas poéticas, como a dos repentistas no Nordeste, ou dos rappers, foram muito populares entre os chineses.
Espero que nossa conversa possa convidar mais pessoas, inclusive fora da psicanálise, a terem uma aproximação com o livro.